A noite na maternidade
De volta ao ponto em que me informaram que ficaria internada e que pedi
para avisarem o Enos. Chamaram ele para que eu mesma pudesse falar. Um Enos um
pouco pálido apareceu na porta, e nos emprestaram uma sala de exame vazia para
que pudéssemos conversar em privacidade. Uma vez sozinhos, nos olhamos e como
que só então caindo a ficha, nos falamos: vai ser hoje mesmo!
Era pouco mais de meia noite, e já que pelo visto iria demorar a noite
toda decidimos enviar a sogra para casa com a bagagem, já que ela não poderia
entrar e teria que ficar de qualquer jeito na recepção e tentar dormir nas
cadeirinhas duras. No centro obstétrico não é permitido entrar com bagagem, e
não há suficiente espaço para guardá-las, apenas uns lockers pequenos.
O Enos
foi então arranjar um taxi para que a sogra voltasse para casa e enquanto isso
fizeram minha admissão e um exame de sangue. Tinha vários aparelhos de
cardiotoco na sala, e jogando um verde perguntei se iriam me colocar um desses.
“Só se for mesmo necessário” disse a enfermeira. Sorri aliviada.
O Enos voltou, deram para ele uma camisolinha também (que ele vestiu
por cima da roupa toda, deixando mangas de fora, ou seja, não entendemos o
propósito daquilo) e uma touquinha igualmente feia. Nos encaminharam por um
corredor até o Centro Obstétrico, e no caminho tive que parar umas três vezes devido
às contrações. As enfermeiras comentaram que pela frequência e intensidade que
estavam minhas contrações, era bem provável que o parto fosse mais rápido do
que o dr. Narciso tinha previsto. Sorri enquanto a contração acabava: essas
palavras me encorajaram.
Nos levaram para o Centro Obstétrico (C.O.) e nos mostraram o “quarto”
onde eu iria parir. Não era bem um quarto, era uma divisória feita com grandes
biombos numa sala enorme. Tinha uma cama toda tecnológica, uma mesinha, uma
cadeira e uma janela, que abrimos imediatamente para deixar o ar fresco da
noite entrar. Ficamos ali alguns minutos, mas mesmo tendo privacidade visual
ainda podia ouvir as outras mulheres em trabalho de parto, e isso me deu nos
nervos.
Aliás, no estado em que estava qualquer coisa estava mexendo com meus
nervos (coitado do meu paciente e sereno Enos, que ouviu mais de um grunhido
meu por simplesmente falar algo num momento pouco oportuno). Pedi para que
saíssemos até o corredor, que por ser madrugada estava vazio. Ali pude ficar
mais sossegada. Só estávamos eu e ele, e podia caminhar pelo corredor todo e me
segurar nas paredes e agachar quando as contrações vinham.
Ficamos ali uma ou duas horas, não sei ao certo. Foi muito bom que
nosso parto tenha sido durante a noite, pois o prédio estava bem sossegado.
Algumas semanas antes, quando fomos fazer a visita, esse mesmo corredor vazio
onde agora estávamos laborando com calma e silêncio estava bem mais agitado,
com macas, enfermeiras indo e vindo e até nosso grupo fazendo o tour.
As contrações foram ficando mais e mais fortes, e eu perdi um pouco a
noção do tempo. A pressão foi tão forte, que vomitei numa lixeira que tinha ali
mesmo. Ficava em geral em pé apoiada na parede, acocorava ou andava um pouco
entre as contrações. Tentava imaginar cada contração como uma onda e repetia o
“mantra”: abre, abre, abre...
Havia bastantes cadeiras, mas a simples ideia de sentar mexia com meus
nervos e me parecia impossível. O Enos foi um anjo, ficando sempre ao meu lado,
massageando minhas costas, trazendo água fresca, me ajudando e me sustentando.
Tentou me encorajar com palavras também, mas mandei ele calar algumas vezes,
coitado. Durante as contrações, até o som da minha respiração me irritava
profundamente.
O Enos tinha levado o iPod no bolso e filmou alguns destes momentos no
corredor. Lembro que me irritei com ele por isso e isso transparece no vídeo,
mas hoje agradeço porque assim temos essa recordação dessas horas surreais,
apesar de não mostrar para ninguém e ter feito ele jurar que ficaria só entre a
gente.
Após um par de horas comecei a ficar bastante cansada. Voltamos para o
C.O. A filha da mulher que tinha conversado comigo na recepção estava no
compartimento ao lado do meu e quase parindo, então vários médicos e
enfermeiras estavam por lá. Soubemos que a outra mulher a que a mulher da
recepção tinha se referido, já tinha ganhado e estava em recuperação, e outra
mulher que deu entrada logo depois que eu estava laborando. Todas esperando
meninas. Foi a madrugada das meninas!
Subi na cama e fiquei meio deitada, meio de quatro por uns tempos. O
dr. Henrique passou para ver como eu estava e me ofereceu a bola suiça. Disse a
ele que nem imaginava a possibilidade de sentar em algum lugar e pedi para ir
ao chuveiro, mas o dr. disse que por estar a moça ao lado perto de dar a luz e
havia movimento de médicos e enfermeiras, para privacidade dela eu teria que
esperar um pouco para circular até o chuveiro. Ofereceu de novo a bola e eu,
muito contrariada, concordei. Que bom que concordei.
Diferente do que eu tinha
imaginado, a bola foi algo muito bom. Sentei nela, apoiei os braços na cama que
era bem mais alta, afundei a cabeça nos braços, fechei os olhos e tentei
relaxar. O Enos estava sempre por perto, e tentou me fazer massagem mas me
impacientei. Coitado. Então ficou ao meu lado, pronto para me dar o copo de
água ou a lixeira para vomitar, conforme eu pedisse. Quando as contrações
chegavam eu levantava levemente e voltava a sentar. Perdi a noção de tempo e
espaço. Os sons ficaram longe, só tinha eu, a bebê e as contrações. Estava
cansada, e às vezes chorava e pensava, só pensava porque não conseguia nem
falar, que queria ir embora para casa, sem dor, sem nada. Só queria que
acabasse. Pensava que uma cesariana não podia ser pior do que aquilo. É claro
que podia, mas naquela hora teria aceitado uma. Teria aceitado qualquer coisa. Rs.
Depois de algum tempo, percebi que estava molhada. Não sabia o que era,
imaginei que seria a bolsa que teria roto, já que até então estava inteira (não
era. Permaneceu inteira até o final), mas não tinha forças ou vontade de olhar.
Só percebia que estava molhada. Algum tempo depois, percebi que o Enos estava
se movendo. Foi calmamente até a porta para não me alarmar, chamou a enfermeira
e lhe disse que eu estava sangrando, perguntando se era normal. Ela disse que
sim, mas que iria procurar o dr. para me examinar.
O doutor demorou para vir. A moça ao lado meu e a mulher que chegou
logo depois que eu, tinham acabado de ganhar e estavam todos muito ocupados.
Logo outra mulher foi levada ao compartimento ao lado. Ela acabava de chegar,
mas iria ganhar sua bebê antes que eu! Não era justo.
Dr. Henrique chegou e perguntei se agora estava liberado para ir ao
chuveiro. Ele me examinou primeiro e disse que estava com 7 cm e que poderia ir
ao chuveiro sim, mas que primeiro queria confirmar com o dr. Narciso. Enos e eu
nos olhamos e pensamos: só pode ser brincadeira! Este médico sabe alguma coisa?
Depois de mais uma eternidade que segundo o Enos não durou mais do que
alguns minutos, o dr. Narciso veio me examinar. Me disse: “Mari, a tua bebê já
está chegando, você já está com 9 cm”. Pediu que não fosse para o chuveiro,
pois poderia dilatar rapidamente e ter que parir por lá mesmo ou no corredor, e
que não conseguiriam me preparar para o parto.
Tentei insistir dizendo que não
precisavam me preparar, que eu conseguiria parir, inclusive até preferiria
parir na água, mas ele falou que não estão preparados ainda para isso, que tem
banqueta de cócoras e tudo mas ainda a equipe não está treinada para fazer
assim. Cansada, concordei. Ele disse então que ficasse um pouco deitada de lado
para dilatar esse último cm, inclinou a cama tecnológica para que a gravidade
ajudasse, deu instruções ao Enos para que me ajudasse com o ritmo da respiração
e saiu para atender a mulher do lado, que tinha acabado de chegar e iria ganhar
antes que eu. Falou também que tentasse não gritar porque só me faria
desperdiçar as forças, que ao invés disso dirigisse a força para dentro. Isso
ajudou.
Fiquei de lado, sem forças, sem noção de tempo ou lugar, sem quase
conseguir falar porque parecia que qualquer músculo que utilizasse “chamava”
outra contração. Mais uma vez, o Enos foi precioso. Segurei a mão dele como
quem segura um colete salvavidas. Apertei e apertei enquanto ele me encorajava
a respirar, afastava meus cabelos do rosto (já tinha perdido a touquinha fazia
tempo), limpava meu suor e me encorajava dizendo que estava indo muito bem, que
a nossa filhinha estava chegando e o quanto ele amava a nós duas, e que logo
logo acabaria. Pedi que orasse. Ele orou.
Mais uma eternidade se passou. Comecei a ficar impaciente, a gritar que
tinham nos largado ali, a pedir que alguém viesse me ver, e vários outros
impropérios. Enfim. Puxei o Enos e falei: Você precisa me ouvir! Procura o
médico. Procura a enfermeira. Alguém. Fala que estou sentindo vontade de fazer
força. Fala isso. (Nem era estritamente verdade, mas eu estava me sentindo meio
abandonada e esgotada, e sabia que com isso alguém viria. Rs).
Ainda demorou mais um pouco para vir alguém, mas quando vieram, veio
logo a comitiva toda: dr. Henrique e dr. Narciso, e mais duas ou três
enfermeiras, não sei ao certo. Uma médica neonatologista também estava lá com
uma residente, mas essa parte me ficou meio nebulosa. Me examinaram e dr.
Narciso disse: “Mari, você está pronta. A Hadassa está chegando! Vamos te
preparar, ok?” Concordei e os preparativos começaram. Dr. Narciso dava
indicações ao dr. Henrique sobre o que fazer, qual pano dobrar de que jeito,
arrumavam a cama, levantavam alavancas aqui e ali. Comecei a gritar que não
queria parir nessa posição, que a gravidade não iria ajudar. As enfermeiras
tentaram me convencer brandamente de que eu estava errada, o que só me irritou
mais, mas o dr. Narciso calmamente falou que eu estava certa, que essa posição não
era das melhores anatomicamente, mas que era melhor para eles poderem me
ajudar, lembrando que “ainda a equipe não foi treinada” para assistir a partos
de cócoras, mas que já chegariam lá e quando eu fosse ter meu segundo filho
tudo estaria perfeito para que tivesse o parto como eu queria. Que a cama
tecnológica era japonesa e a última tecnologia para me deixar o mais
confortável possível e etc.
Fiquei muito brava porque não era isso que eu
entendia por humanização, mas não queria mais brigar. Queria que acabasse logo
e que a minha garotinha nascesse bem. Freneticamente, comecei a questionar tudo
e a dar ordens: que não era para fazer episiotomia, que não fizesse isso ou
aquilo. O doutor meio que se irritou e falou para alguém que “esta moça entrou
no google antes de vir”. Fiquei uma fera. Gritei com ele que não era nada
disso, que sou uma mulher empoderada que estuda há anos para se preparar para o
momento mais importante da sua vida e que sabia tudo que está acontecendo. Ele
passou a me respeitar um pouco mais depois disso.
Tudo pronto. Dr. Henrique iria me guiar no expulsivo com supervisão do
dr. Narciso. Ele indicou então para meu jovem e inexperiente médico como fazer
para estourar a bolsa, que estava intacta. Nem questionei, já que sabia que
estava bem no fim e que ao estourar a bolsa tudo andaria mais rápido, que era o
que eu queria. Falou para ele onde se posicionar, perto mas não tanto para não
levar um banho de líquido amniótico. Enos e eu nos olhamos, não acreditando. O
jovem doutor Henrique sabia fazer alguma coisa afinal? Porque até agora, não
parecia!
Amanhã, o final da aventura toda. Rsrs. Não percam.
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